Pequenas travessuras. Coisas menores. Artimanhas da sobrevivência. Alguma forma maluca, provavelmente inconsciente, de dizer:
Cezarino José Ramos foi um personagem de Federico Fellini. Tinha os olhos oblíquos, o corpo ligeiramente curvado e uma aposentadoria do INSS. Era um pouco gordo e nunca foi considerado um dos dez mais elegantes de Planalto Catarinense − embora jamais tivesse se preocupado com essas futilidades. O seu mundo era outro. De que importavam roupas caras, colunas sociais e outras bobagens para um homem que teve como ocupação profissional mais importante vender rifas?
Conta a lenda que, quando chegou a Lages, aos 14 anos, vindo de Correia Pinto, tinha muitas dificuldades para articular a fala. Normalmente só conseguia balbuciar um "ô lôco!", que funcionava para exprimir todas as categorias gramaticais, além das suas emoções. Era a sua maneira de se comunicar com o mundo. Depois, com o passar do tempo, foi aprendendo a articular os fonemas, distinguir os significados, estabelecer comparações, musicar as frases. Na escola da vida aprendeu as noções básicas de fonoaudiologia, linguística e semiótica. Mesmo assim tinha a voz arrastada, difícil de ser entendida.
Quando as pessoas queriam saber se ele havia compreendido alguma coisa, perguntavam, usando uma expressão corrente da época, "Morô?". A resposta era imediata: "Morô!". E nesse ritmo surreal o apelido acabou se estabelecendo. Cezarino se transformou em Morô. E isso está tão enraizado no inconsciente coletivo dos serranos quanto o amor de Cezarino, digo, de Morô, pelo Vasco da Gama.
Sim, ele viveu uma paixão sofrida e ardente pelo time de futebol do seu coração. Era um sentimento obsessivo. Quando o Vasco esteve em Lages, em 1976, para um amistoso, Morô correu pelas ruas da cidade atrás do ônibus da delegação. No hotel, com o rosto molhado pela alegria, fez vigília. No campo, durante o jogo (uniformizado: calção, camiseta, chuteira), vibrou tanto com o 2 x 1 do seu time contra a equipe local, o Internacional, que a cada gol vascaíno deu uma volta olímpica pelo estádio. Há quem diga que foi o seu momento de glória – para espanto dos principais jogadores da equipe cruzmaltina: Mazzaropi, Roberto Dinamite, Ramon e Abel.
Durante muitos anos, perdeu a paciência com a cartolagem do Vasco. Com uma letra redonda e um pensamento absolutamente límpido (se é que isso é possível quando o assunto é futebol) escrevia longas cartas à diretoria do clube, sugerindo mudanças no plantel ou a troca de alguns integrantes da comissão técnica (inclusive o treinador). Enfim, manifestava o seu descontentamento.
Quem está na chuva acaba molhado. Então, vez ou outra, recebia respostas falsas do Vasco. Alguns conhecidos, envoltos em pura sacanagem, montaram o cenário teatral. Quando Morô descobria a trapaça, a ira tomava conta do ambiente. Mas isso era raro. Inclusive porque ele aprendeu a conviver com essas brincadeiras.
Mas nem só do Vasco viveu Morô. Tinha como ganha−pão a chamada "rifa eterna". Eterna? Pois é, houve quem dissesse que era sempre a mesma. Intrigas da oposição, óbvio. O que nunca foi possível negar é que... havia algo de estranho nessa história toda. Sem profissão definida, com dificuldades motoras (uma vez tentou ser auxiliar de cozinha – não deu certo), Cezarino optou por fazer pequenos trabalhos que lhe pudessem render alguns trocados. Com o passar do tempo, entrou no ramo das loterias. Primeiro, bilhetes da Federal; depois, pequenas rifas. Com habilidade matemática razoável, percebeu que as rifas eram mais rentáveis. Tornou−se um profissional do ramo. O único problema é que... dá para contar nos dedos (de uma das mãos) os ganhadores conhecidos. No entanto, como garantia o comerciante Walter Gill de Souza, isso não era de todo verdade: "Ele entregava, sim". E acrescentava, logo em seguida: "Desde que fosse conveniente".
Pequenas travessuras. Coisas menores. Artimanhas da sobrevivência. Alguma forma maluca, provavelmente inconsciente, de dizer: "tudo é permitido, se for divertido".
No outro extremo da idiossincrasia humana, Morô era um homem supersticioso, influenciável e cheio de manias. Entre outras coisas, não tolerava que fizessem o sinal da cruz nas suas costas. "Dá azar", reclamava candidamente.
E assim, no meio do caos urbano, Morô atravessava os dias e o folclore. Caminhando pelas ruas, com uma cartela de rifa nas mãos, poderia ser encontrado nos locais mais estranhos e absurdos da cidade. Da "zona" ao Coral, passando pelo Morro do Posto, Brusque, Vila Nova, Copacabana, Aeroporto Velho, Santa Helena, calçadão – nada era limite para esse andarilho que muitas vezes foi chamado de "mendigo sofisticado".
Muitos sociólogos sem diploma explicavam a situação: essa história de vender rifa (que ninguém ganhava) nada mais era que uma maneira muito particular de pedir ajuda financeira, sem precisar "pedir" de fato. Pode ser. Isso nunca foi importante. Pelo menos para ele.
Lages é o lugar onde Morô empenhou suas esperanças e construiu um mundo muito particular, onde todas as coisas eram límpidas e transparentes, beirando a ingenuidade. Ao mesmo tempo, certo das incertezas da existência, nunca sentiu medo de continuar vivendo. Talvez seja por isso que apostava diariamente no jogo do bicho. Era a forma com que respondia uma pergunta inquietante: será que a sorte não está por aí, querendo anunciar o amanhã?
Cezarino José Ramos, o Morô, faleceu aos 80 anos, em 2010, depois de seis meses de internação hospitalar.
Texto: Raul Arruda Filho
Galeria
Agora Ficou mais fácil e Rápido Encontrar o que Você Precisa!