Antônio terminou o dia no hospital ou na polícia? Talvez nos dois lugares. Quem era o agressor? E a motivação? Que papel desempenha a pessoa ao telefone no desenrolar da trama?
– Foi uma surra exemplar. Antônio estava de caso com a vagabunda da Esmeralda.
Aqueles que conversam em voz alta ao telefone enquanto estão caminhando correm o risco de alguém escutar parte do diálogo. Foi o caso. A parte ativa estava contando para alguém uma possível confusão passional. Infelizmente, pelo caráter transitório da situação, a pessoa que estava no celular mudou de calçada e os (melhores?) detalhes do diálogo se perderam.
Então, ao ouvinte involuntário, se quiser desenvolver a história, cabe usar da imaginação e introduzir um pouco de fantasia na narrativa. Ou melhor, fornecer substância ao trivial. Um exercício literário, digamos, começa no momento em que as cenas mais diversificadas (escabrosas, românticas, violentas) passam a fazer parte do enredo. Surge (no plano imaginário) uma estrutura com começo, meio e fim (não necessariamente nessa ordem). Para seduzir o ouvinte/leitor, o narrador acrescenta ou inventa as minúcias que estavam ausentes no fragmento inicial. Adiciona ao alimento ficcional o molho que fornece sabor diferenciado. E pouco importa a verossimilhança. O mecanismo ficcional não tem compromissos com os fatos – embora os use como apoio para materializar o texto (ou a conversa) e encantar o público.
Antônio terminou o dia no hospital ou na polícia? Talvez nos dois lugares. Quem era o agressor? E a motivação? Que papel desempenha a pessoa ao telefone no desenrolar da trama? Será que o adjetivo usado contra Esmeralda possui alguma veracidade ou foi causado por alguma rixa entre vizinhas? Qual é o contexto que explica a agressão? Quais são os personagens mais importantes da narrativa? E aqueles que contribuíram para a existência dos fatos e não foram citados? Qual é a possibilidade de tudo não ter passado de um engano?
As variações tendem ao infinito – e além. Tudo depende da criatividade daquele que está contando a história. Para seduzir o ouvinte/leitor, o narrador acrescenta ou inventa as minúcias que estavam ausentes no fragmento inicial. Adiciona ao alimento ficcional o molho que fornece sabor diferenciado.
Histórias com pouco poder de atração podem se transformar em algo interessante – basta usar um pouco de sensibilidade e técnica literária. Esse fenômeno acontece o tempo todo. A diferença é que (dependendo das circunstâncias e de interesses difusos) muitas narrativas ficam invisíveis aos olhos apressados – aqueles que são incapazes de perceber o Outro, aquele que está ao seu lado. Enfim, o cronista é alguém que observa a vida e consegue extrair do cotidiano alguns acontecimentos que deveriam ser considerados tão importantes quanto os que são anunciados nas manchetes. Ao dar destaque às questões que estão escondidas no dia a dia, estabelece uma forma de resistência à pasteurização do viver.
Entre a comédia e a tragédia, entre a felicidade e a tristeza, a humanidade tropeça, cai, levanta, segue em frente (nem que seja para reiniciar o ciclo). Nesse percurso protagoniza muitas aventuras. E que constituem, para o bem e para o mal, o material essencial para a narração. Conta a lenda que Ignácio de Loyola Brandão costumava percorrer São Paulo de ônibus e/ou de metrô. No melhor estilo caçador de histórias, munido de caderno e caneta, observava o que estava acontecendo ao seu redor. As anotações (diálogos, momentos engraçados) obtidas dessas experiências resultaram em crônicas e contos divertidos.
Texto: Raul Arruda Filho
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