Era um tempo em que ir ao cinema instituía um ritual. Nessa cerimônia social era possível estabelecer contato com alguém interessante (mesmo que fosse apenas um olhar errante)
Por acaso, um filme ruim é impedimento para ir ao cinema? Quando Mítia fez essa pergunta, fiquei algum tempo sem encontrar um argumento razoável. Discutir estética sempre resulta em problemas insolúveis ou equívocos paquidérmicos. E a questão tinha um objetivo mais prosaico. Bastava dizer sim ou não e alinhar uma meia dúzia de palavras para justificar a resposta. No entanto,...
O cinema (ao lado da literatura) salvou a minha adolescência. E isso não é exagero. Aquelas duas horas em que me isolava do mundo em um dos quatro cinemas que existiam na cidade tiveram um efeito terapêutico equivalente a vinte sessões com o psicólogo. Como escreveu certa vez Felix Guatarri, o cinema é o “divã do pobre”. Talvez não seja mais. De qualquer forma, o cinema fornecia (fornece) um sossego que servia (serve) para encontrar a leveza necessária para enfrentar os problemas da vida.
Com o passar do tempo, os Cines Tamoio e Marajoara (onde assisti dezenas de faroestes) foram substituídos pelo Cine Marrocos (onde passavam filmes mais sérios). No Cine Avenida fui poucas vezes, era longe, precisava ir de ônibus e isso inviabilizava o passeio. O tempo foi refinando o gosto (mais ou menos) e introduzindo novos conceitos. Lembro-me de estar quase sozinho na sala imensa do Marrocos quando passou “Sonata do Outono” (Dir. Ingmar Bergman, 1978), a cena das duas mulheres discutindo aos gritos ficou gravada na mente. A censura da ditadura militar liberou “Laranja Mecânica” (Dir. Stanley Kubrick, 1971), mas, para preservar a moral e os bons costumes, colocou tarjas nos fotogramas em que eram mostrados nus frontais. Então, o público foi presenteado com a dança das bolinhas pretas que ficavam pulando pela tela e que revelavam mais do que o que queriam esconder. Em “Apocalipse Now” (Dir. Francis Ford Coppola, 1979), a guerra se transformou em um espetáculo assustador – e que contrastava com o humor cínico (e mordaz) de “Mash” (Dir. Robert Altman, 1970). No intervalo dos dramas pesados, (“filmes-cabeça”, como se dizia na época), o público se divertia com o improvável em “Aeroporto” (Dir. George Seaton, 1970), “Top Gun – ases indomáveis” (Dir. Tony Scott, 1986), “O poderoso chefão” (Dir. Francis Ford Coppola, 1972), a franquia James Bond e outras películas que enalteciam os heróis improváveis.
Era um tempo em que ir ao cinema instituía um ritual. Nessa cerimônia social era possível estabelecer contato com alguém interessante (mesmo que fosse apenas um olhar errante). Muitos namoros começaram (ou terminaram) dentro de uma sala de cinema. Quem não estava assistindo o filme em cartaz, ficava na rua, esperando pela “saída” da sessão de domingo à noite. Mais do que um exercício de voyeurismo, era um momento de antecipação para encontrar amigos, para ir tomar cerveja no “Texas Burguer” ou comer um pastelão em “A Petisqueira”. Se possível, se houvesse oportunidade, comentávamos o filme.
A vida me levou para outras cidades, outros cinemas, outras percepções do mundo. Nas cidades onde morei ou visitei foi possível anexar dezenas de filmes ao catálogo cinematográfico. Foi na capital paulista, nos anos 80, que assisti “Salò ou os 120 dias de Sodoma” (Dir. Pier Paolo Pasolini, 1976) – um filme inquietante e que me causou mal-estar. Só consegui entender a força daquela metáfora angustiante alguns anos depois.
Houve um tempo em que o SESC promovia sessões alternativas com filmes que não estavam disponíveis nas salas comerciais. Em algum momento, vi toda a obra de Glauber Rocha e Humberto Mauro, além de inúmeros clássicos. Recentemente, a exibição de “Bacurau” (Dir. Keber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, 2019) conseguiu agregar milhares de espectadores que, por diversos motivos (inclusive os econômicos), foram impedidos de ver o filme em salas comerciais.
Muitos críticos de cinema se mostram céticos sobre o futuro do cinema. Afirmam que, na modernidade, os canais de “streamings” estão matando as salas de cinema. Seguem fazendo o trabalho sujo que foi iniciado com o vídeo cassete, continuou com o DVD e instituiu a ilusão burguesa de que o “home theater” e as televisões gigantes podem substituir a magia que somente uma sessão de cinema pode oferecer. Aqueles que conseguem evitar o autoengano continuam pagando pelo ingresso (apesar do preço da pipoca!) e mergulhando na “fraude mais bonita do mundo” (nas palavras de Jean-Luc Godard).
Voltando à pergunta inicial, continuo indo ao cinema toda vez que posso (mas apenas em sessões legendadas!). Mesmo nos filmes de super-heróis que migraram das histórias em quadrinhos para as telas. Os enredos são ridículos, mas os efeitos especiais são sensacionais. Um filme ruim nunca é impedimento para ir ao cinema!
Texto: Raul Arruda Filho
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