Cada texto precisa ser revisado a todo instante, a constante sensação de que falta ou está sobrando alguma coisa paira no ar, a ideia inicial raramente se completa, perder o fio da meada costuma ser a regra
Nenhuma palavra encontra caminho para formar um novo texto. O teclado do computador vai continuar esperando por algum tema, coisa pouca, talvez uma história sobre o amor ou a guerra conjugal (que se não é mesma coisa, muito se aproxima), quiçá um pouco de humor sobre as trapalhadas que mostram as diferenças entre as vidas urbana e rural, talvez fornecer uma opinião sobre a situação catastrófica dos indígenas da tribo Yanomami ou comentar as mais recentes monstruosidades cometidas por alguns jogadores de futebol; em momento de desespero, poderia cometer a homenagem alguém ilustre. A sensação angustiante de ter muitas coisas a dizer e nenhuma parecer suficiente para cumprir com a obrigação constitui um dos grandes problemas a ser superado por quem (escritor, jornalista, redator) precisa viver do que escreve.
Uma das lendas gregas mais impressionantes se refere ao Sísifo, um sujeito que foi condenado pelos deuses a carregar uma pedra até o cume de uma montanha. Toda vez que ele estava prestes a atingir o objetivo, a pedra rolava montanha abaixo e ele precisava recomeçar a tarefa. Escrever se aproxima desse castigo.
Cada texto precisa ser revisado a todo instante, a constante sensação de que falta ou está sobrando alguma coisa paira no ar, a ideia inicial raramente se completa, perder o fio da meada costuma ser a regra, enveredar pelo desconhecido e descobrir, depois de algumas horas de esforço, que não há alternativa senão reiniciar o trabalho – todo o esforço foi em vão. Não bastasse essa aflição, até chegar ao leitor o texto sofre mil adaptações, palavras são substituídas, informações são acrescentadas ou suprimidas, pontos de vista são alterados. Esse trabalho invisível garante a legibilidade do que será publicado. E desmistifica duas das principais versões sobre a facilidade de escrever.
A primeira, e mais simples, refere-se ao fato de que não se deve confundir alfabetização com técnica narrativa. Saber ler e escrever, além de construir uma frase ou duas, não significa que haja domínio da escrita (embora os cursos de redação criativa digam o contrário). A segunda, fruto do misticismo, confunde trabalho com genialidade. Inspiração, dom e benção divina não existem. O texto surge em consequência do esforço, do suor, muitas vezes de horas em que a mente está trabalhando para transformar uma ideia em algo que supera o imaginário e se concretiza no papel ou na tela do computador. Acreditar em algo contrário significa apenas falta de entendimento sobre como a escrita funciona.
Um terceiro item (e que costuma ser esquecido) refere-se à intimidade com as palavras
– mais do que necessário, o uso competente do vocabulário possibilita a transmissão do conhecimento, faz com que o leitor mantenha o interesse no que está sendo narrado. O que muitas pessoas esquecem é que ninguém consegue construir o texto sem ser um bom leitor.
No entanto, o conceito de leitura ultrapassa o significado mais óbvio – livros, jornais, redes sociais. Ler o mundo talvez seja mais importante. De nada adiante ter o domínio técnico e não saber utilizar essa qualidade na interpretação das coisas que acontecem ao seu redor. De forma complementar, necessário se faz entender o Outro, aquele que está ao lado – aquele que muitos costumam negar.
Escrever implica em estabelecer um compromisso político. Ou melhor, torna imprescindível deixar claro de que lado se está nas estruturas de poder. Sem esquecer que tudo o que é publicado, de uma forma ou de outra, modifica o leitor. Muitos interesses estão em jogo quando o texto se torna público – nem sempre são coisas boas.
Texto: Raul Arruda Filho
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