Na segunda vez, as reações mudaram. O que antes era tolerância se transformou em irritação: várias reclamações foram ouvidas
Na tarde ensolarada, dentro do ônibus urbano, condenado a vestir roupa social, Antônio afrouxou a gravata – sonhando com a possibilidade de usar camiseta, bermuda e chinelos no final de semana. Embora o ambiente fosse opressivo (dentro do ônibus, ele sempre se sentia mais apertado do que sardinha em lata), aproveitou a oportunidade para filosofar um pouco: fez, para si mesmo, um breve balanço dos malabarismos necessários para superar os problemas que acompanham a condição humana.
Essa, digamos, divagação foi interrompida por um alvoroço, lá no fundo da “circular”.
Um rapaz, aproximadamente uns 20 anos, sem qualquer motivo aparente, estava cantando. A voz era desafinada, alternando momentos de calma e de agitação. Os versos da música eram ininteligíveis. Talvez fosse uma espécie de inglês macarrônico, talvez fossem palavras derivadas de uma linguagem particular, inventada pela necessidade de se expressar.
Ao ver a cena, Antônio fez um exercício de imaginação. Com os olhos voltados para o cantor, Antônio percebeu que um fio colorido escorria do ouvido do rapaz.
A primeira vez que a voz do cantor assombrou os passageiros, quase todos foram tomados por um sentimento de benevolência – a forma com que as pessoas “normais” desculpam os distraídos (evidentemente “aquilo” só podia estar acontecendo por distração).
Na segunda vez, as reações mudaram. O que antes era tolerância se transformou em irritação: várias reclamações foram ouvidas. O cobrador também se somou aos descontentes e fez um comentário, em voz alta, sobre as pessoas que não possuem “desconfiometro”.
O rapaz continuou a cantoria, como se quisesse causar confusão, como se ambicionasse ampliar o desconforto. Parecia estar em outra frequência, em outro mundo – os óculos escuros que usava era um isolante contra o ódio (câncer que estava corroendo as entranhas dos demais passageiros).
Uma moça chegou a diagnosticar:
— Esse cara deve estar com muitos problemas. Uma pessoa, quando faz esse tipo de coisa, só pode estar muito carente, na beira do desespero.
Uns dez minutos, quando o ônibus chegou ao terminal, o rapaz desembarcou e sumiu no meio da multidão. Antônio, por algum motivo que até hoje ainda não conseguiu entender, passou o resto do dia ouvindo blues.
Texto: Raul Arruda Filho
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