Às vezes voltava para casa, completamente bêbado, falando sobre hemistíquios, alexandrinos e epopeias líricas. Uma vez declamou, aos berros, um poema em francês. Acordou a casa toda e uns dois ou três vizinhos
− Alô?
−Anita? É o Joaquim. Estou ligando pra avisar que vou chegar mais tarde. Vamos, finalmente, fundar o nosso clube de poesia. Não é fantástico?
Anita não teve tempo de responder, o marido desligou antes. Com o telefone na mão, a mulher teve um pressentimento: alguma coisa estranha estava acontecendo. Clube de poesia? E o que é que o Joaquim sabia de poesia? Tá certo que havia acumulado pela vida afora certa instrução cultural e, às vezes, recitava no meio da conversa um ou outro verso (normalmente bem colocado no contexto da discussão), mas... Daí a se transformar em poeta, ou pior, em intelectual, era preciso correr muita água por baixo da ponte. Clube de poesia? Hum... Que piada sem graça. Até porque ela conhecia, com intimidade, a "figura" com quem estava casada a mais de quinze anos. Provavelmente era apenas mais uma desculpa esfarrapada para aquele bando de bêbados, que ele chamava de amigos, "tomar todas". É, devia ser isso mesmo.
Satisfeita com essa conclusão, Anita parou de pensar no assunto.
No entanto, o impossível estava acontecendo. Joaquim, toda terça−feira à noite, com meia dúzia de livros debaixo do braço, saía para a tal reunião.
Às vezes voltava para casa, completamente bêbado, falando sobre hemistíquios, alexandrinos e epopeias líricas. Uma vez declamou, aos berros, um poema em francês. Acordou a casa toda e uns dois ou três vizinhos. Foi preciso o filho mais velho levantar da cama e chamar a atenção do entusiasmado poeta. Com os olhos brilhando e balbuciando uma algaravia particular pediu perdão e foi dormir.
A rotina doméstica foi alterada. Joaquim se encastelou no escritório e proibiu a empregada de se aproximar enquanto ele estivesse "trabalhando".
E o trabalho era um poema épico sobre a conquista da América, os mitos indígenas e o horror criado pela civilização europeia. Esporadicamente, Anita o ouvia, ao telefone, pedindo informações sobre a civilização maia ou então discutindo a veracidade de algumas inscrições rupestres encontradas no interior da Bolívia. Em alguns momentos, o debate telefônico ficava tão acalorado que, da conversa mansa inicial, evoluía para gritos primitivos, recheados de palavrões e outras delicadezas.
Anita estava à beira do estresse quando Joaquim lhe comunicou que o Clube de Poesia estava organizando uma excursão para Minas Gerais. Seriam apenas alguns dias – duas semanas, para ser mais exato. Infelizmente as esposas não poderiam ir junto. Será que ela se importava? "É claro que não", disse aliviada. Férias conjugais (e poéticas) eram tudo o que Anita queria da vida – naquele instante.
E assim foi. Joaquim, feliz como um adolescente, embarcou uns vinte dias depois. Prometeu fotografar o cemitério onde estavam enterrados alguns dos poetas inconfidentes, jurou que declamaria "Marília de Dirceu" nas ruas de São João Del Rey... Visitaria Ouro Preto, Sabará, Mariana... Compraria souvenires, cartões postais... Enfim, tinha certeza que aquela viagem seria inesquecível. O filho do meio sorriu amarelo, imaginando sabe−se lá o quê, talvez o internamento do pai. E abanou a mão para o ônibus que estava saindo.
Durante o tempo que ficou fora, Joaquim telefonou todos os dias. Fazia questão de contar – com detalhes – as novidades. Encontrou a Nélida Piñon. Conversaram durante "horas". Ganhou, naturalmente, autógrafo para toda a família. O filho caçula aproveitou a "doçura enjoativa" do momento e avisou à plebe doméstica que estava de mudança para a casa do primo: "Ninguém vai conseguir aguentar o papai quando essa ‘bad trip’ terminar!"
"Palavras proféticas", diria Anita, quando reencontrou Joaquim. Depois de um longo e ardoroso beijo, ouviu o marido dizer: "J’ai la fureur d’aimer". Diante da cara de espanto da mulher, o marido foi esclarecendo:
− "Eu tenho a fúria de amar". É um verso fantástico do Verlaine. Você não conhecia?
Não, a esposa não conhecia. Nem queria conhecer. E já começava a ter raiva de quem tinha compartilhado aquela glória.
A coleção de fotos e vídeos se transformou em sinônimo de suplício. Eram tumbas, praças tediosas e estátuas caindo aos pedaços. Invariavelmente, a vítima de plantão, depois do décimo fotograma, olhava para o relógio e lembrava-se de um compromisso inadiável. Antes de ir embora, prometia voltar em outra hora, com mais tempo, para ver aquelas maravilhas. Joaquim sorria, extasiado.
E nesse ritmo a vida foi sendo conduzida por alguns meses. Uma tarde, Anita encontrou, em cima do sofá, o celular de Joaquim. Mesmo sabendo que estava errada resolveu conferir as postagens do marido.
Imediatamente ficou confusa: o "ilustre companheiro de toda uma vida" tinha enviado, para uma mulher desconhecida, um poema erótico. Um daqueles bem picantes, cheio de insinuações e promessas.
Anita ficou boquiaberta: "Meu Deus, o que será que está acontecendo?" Com uma tranquilidade desproporcional para aquele momento, sentou no sofá.
Algumas horas mais tarde, depois de muito pensar, Anita reuniu os três filhos e colocou as cartas na mesa. Disse o que precisava ser dito. Depois, chamou o marido e, diante da prole, fez o relato. Joaquim negou. Negou tudo. E, ofendido, exigiu desculpas. Como não conseguiu convencer ninguém, enquanto arrumava a mala, ensaiou meia dúzia de lágrimas. Foi para um hotel.
Em menos de uma semana, estava morando com a amante.
Às vezes, por pura farra, mostra para os amigos as fotos da viagem a Minas. Na maior felicidade, explica:
− O responsável por essas imagens é o Silva, meu amigão! Em cada cidade mineira, ele fazia questão de fotografar os monumentos, as igrejas, as velharias. Enquanto isso, nós... Bem, nós ficávamos namorando no hotel! Foi uma viagem maravilhosa! Aliás, maravilhosa foi essa minha ideia de fundar um Clube de Poesia – o álibi (quase) perfeito!!!!!!!!
Texto: Raul Arruda Filho
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