O texto a seguir contém situações fictícias, todo o resto faz parte da história da cidade
Tinha lido em O Imparcial que haveria comemorações pelo dia dos trabalhadores nos Estados Unidos, e pensei como seria isso aqui na minha terra natal, Lages. O dia primeiro de maio de 1902 amanheceu diferente, alguma coisa no ar que vinha do Sul mostrava que o inverno que batia à porta da nova igreja da Diocese iria espantar as pessoas de uma maneira que a terra dos Ramos nunca mais seria a mesma. Esses ventos vinham principalmente do Morro das Pedras.
Passei logo cedo no Delfino para aparar a barba e fixar as pontas do bigode. Portas e janelas fechadas. Lembrei que ele contava que os Mayorca caçavam a qualquer hora, defini por conta que estava no mato com algum perdigão no colo.
Atravessei o pátio dos Ramos para voltar para casa e ajeitei sozinho. Desci a rua central correndinho para pegar o café da manhã na pensão do Julinho Heidrich e a minha encomenda que o Canozzi trouxe de Porto Alegre. Uma câmara Al Vista, o modelo mais moderno em câmaras photográficas. Agora poderia aumentar os réis na gibeira. Junto do aparato, películas de 35mm bem encaixotadas, um manual em francês e um bilhete (em português) do Canozzi.
Lages, 30 de abril de 1902.
Estimado Fabrizio,
Esse modelo veio sozinho de navio para o Brasil. Consegui a muito custo com um marinheiro francês depois de prometer alguns favores a ele pelas casas da baixada na capital gaúcha. Sua conta está paga, não precisa se preocupar com mais nada. Parto hoje para o sul, quando voltarmos, quero aquela bela fotografia minha e da pessoa que já sabes a quem almejo.
Saudações,
E. Canozzi.
P.s.: O Olintho deseja apenas uma fotografia com a sua mula de viagem.
Voltei com todo o cuidado para casa, passei pela Coronel Córdova com a cabeça baixa e abraçando o novo brinquedo com todo o zelo do mundo. Ler o manual ficou fácil. Os franceses, além de ótimos inventores, explicam tudo muito bem por meio de desenhos. Ao meio-dia fiz a primeira fotografia.
Quando a tarde chegou ao meio, notei uma correria estranha pelas ruas. Alguém passou gritando que acharam dois corpos no Morro das Pedras e que seriam do Ernesto e do Olintho.
Eu saí com câmara a tiracolo sem saber para onde ir ao certo. O Seu José Castello Branco, dono do jornal O Imparcial, me parou bem no meio da Praça do Coronel Vidal Ramos e deu-me a ordem para não ir a lugar algum, pois a polícia tinha proibido a imprensa de colher os fatos.
Às dezoito horas, os novos sinos da nova igreja tocaram, o vento aumentou e tudo o que gostaria que não fosse verdade virou notícia. Ernesto Canozzi e Olintho Centeno foram mortos, e as apostas sobre os assassinos caíam sobre os irmãos italianos, os Brocatto.
Seu Castello deu um tapinha no meu ombro, percebi a despedida. Atravessei a Coronel Córdova e vi o Chico Grego abanando o pano de louça em frente a sua choperia, a icônica Cervejaria Dom Xixo. O sinal não era para entrar e ficar à vontade, quando acontecia, era pelo motivo que o Grego queria produzir algum reclame publicitário do seu bar.
Entrei protegendo a câmara embaixo do coletinho que tinha herdado do bisa Furtado, que diziam ter vindo para cá com o Correia Pinto. Mas essa seria uma história que eu ainda iria escrever.
Num canto cativo estava o Coronel Rupp, Vidal Ramos (prefeito de Lages, que era chamado de superintendente), o coronel Caetano Costa, o Janjão Castro e o meu primo rico e promotor público, Sebastião Furtado. Quando criança, os primos chamavam o Sebastião de Sebas, agora é Doutor Furtado.
Janjão circulava a verve dos jornalistas da família Castro. Ele apontou o dedo indicador na minha direção e gritou para que eu levasse a câmara. Doutor Furtado meneou a cabeça fitando o paletó dos antepassados dos Furtado e soltou um “opa” como cumprimento, sorri amarelo.
Ainda que essa distância mesmo sendo parentes fosse notória, nunca faltou o respeito, e numa confidência coletiva, o promotor relatou que eles estavam reunidos para definir o futuro de Lages e que estavam prestes a fazer parte de uma das histórias mais importantes da cidade, o assassinato de Ernesto Canozzi e Olintho Centeno.
Centrei o foco e suspendi o porta-pólvora, enquanto os notáveis ajeitavam os chapéus - menos o Coronel Caetano-, apalpavam os bigodes e seguravam as canecas de chopp Dom Xixo. O gringo atrás da câmara falou baixinho para fazer permuta por uma cópia da chapa, dizendo que daria uma ótima propaganda.
Fiz uma torcida mental para que luz, foco e enquadramento dessem certos, todos os Furtado eram famosos e ricos. Eu queria pelo menos uma parte da glória por registrar aquelas coisas.
Depois do estouro da pólvora e o clarão, aqueles homens importantes brindaram a si mesmos. Eu, sem bebida e guardando as coisas, lembrei que não faria as fotos do Canozzi e do Centeno vivos. Imaginei um grande copo de cerveja bem gelada e brindei a eles com os olhos encharcados de lembranças.
Texto: Fabrício Hasse Furtado
Foto: Museu Histórico Thiago de Castro (MHTC) - Acervo/Divulgação
Arte Crônicas de Sábado: Carlos Alberto Arruda Junior
Referências: Nunes, Sara. Caso Canozzi: Um Crime e Vários Sentidos e Varella, Saulo. A Tragédia do Rio Caveiras
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