Enquanto limpava o chão, o telefone tocou várias vezes. Foram cinco telefonemas. Convites para churrascos. Acabou aceitando um deles, pois um bom pedaço de carne não faz mal a ninguém
Sábado. Ele acordou com fome de viver – inclusive porque o estômago estava vazio. Entre o banho matinal e o assalto à geladeira, um barulho inconfundível invadiu a existência: estava chovendo. Nada contra, até que ele gostava de chuva,... exceto no sábado. Sábado é dia especial. Ou seja, é dia de não fazer nada, de beber cerveja, de comprar inutilidades, de visitar amigos, jogar futebol e, mais importante, começando pelo meio da tarde, é dia de namorar.
Com chuva ou sem chuva, a solução foi ir em frente. E como o dia começou, digamos, molhado, nada melhor que procurar um guarda-chuva. Adivinhe se encontrável estava o objeto? O mais infiel dos animais domésticos (na definição de Mário Quintana) se perdeu em lugar incerto e não identificado. Faz parte do show. Essa era uma boa desculpa para pedir ajuda à vizinha do 305, que, além de muito prestativa, reunia algumas qualidades mais interessantes – muito mais interessantes.
Como em um filme de terror, a vizinha não se encontrava em casa.
De volta ao apartamento, sentou-se no sofá, e exibindo um daqueles olhares de cachorro “pidão” de desenho animado, tentou sobreviver ao desastre que se anunciava. Assim, para romper com a inércia, foi até a geladeira. Usando de uma boa dose de coragem, abriu o eletrodoméstico. Nenhuma novidade. A imagem que tomou conta de suas retinas tão fatigadas foi a mesma de sempre: a ausência. Isto é, a geladeira estava vazia. Ou quase. Um solitário litro de leite resplandecia na luminosidade trêmula e amarela que, de lá de dentro, mostrava a realidade da vida.
Disposto a tomar um porre de leite, sacou (como em um daqueles faroestes que gostava de assistir, em outros tempos, nas matinês de domingo) de um canivete, replica do Vitorinox.
Como é de conhecimento amplo, geral e irrestrito, armas e crianças constituem uma combinação irresponsável.
O susto foi grande quando o litro de leite caiu no chão e se misturou com o sangue que jorrou do polegar. Quer dizer, derramou quase meio litro. De leite. De sangue, foram apenas algumas gotas – o que não impediu que ele pensasse, por um instante, na morte e nas demais insignificâncias do existir. Em dúvida se corria para o pronto-socorro ou se fazia um curativo caseiro, pensou em sair pelos corredores do prédio gritando de dor. Preferiu estancar o sangue com um pedaço de papel higiênico, pois provavelmente ninguém o levaria a sério, tantas tinham sido as maluquices que aprontara pelos corredores do edifício.
Enquanto limpava o chão, o telefone tocou várias vezes. Foram cinco telefonemas. Convites para churrascos. Acabou aceitando um deles, pois um bom pedaço de carne não faz mal a ninguém. O único problema era a chuva, que insistia em fazer as delícias daqueles que adotam o imobilismo como método de existir.
Para encurtar a história, quem forneceu a carona (sim, ele não tinha carro e não queria ter) foi uma loura deslumbrante. Loura falsificada, porém deslumbrante. Ele desceu as escadas correndo, entrou no veículo e, antes do carro dar partida, deu um beijo cinematográfico na mulher, coisa pouca, uns cinco minutos da mais entusiasmada respiração boca a boca.
Sobre o que aconteceu depois, faltam informações.
Texto: Raul Arruda Filho
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