Nas duas situações, ela olhava para o parceiro e sorria. E continuava cantando. Sabia que uma bobagem qualquer não deveria servir de motivo para estragar uma festa tão bonita
Estavam cantando. Abraçados – um se equilibrando no outro –, atravessavam calçadas e ruas. Abriam caminho, no meio da multidão, com suas vozes desafinadas. Não estavam preocupados com a música. O que queriam era proclamar a alegria. E, por isso mesmo, cantavam. Um samba−canção, desses que garantem que o amor é invencível, eterno e maravilhoso.
Algumas vezes ele se deixava levar pelo delírio e parava a cantoria para olhar o espanto colado no rosto dos transeuntes. Outras vezes esquecia os versos e ficava remoendo uma algaravia particular, absolutamente fora de ritmo.
Nas duas situações, ela olhava para o parceiro e sorria. E continuava cantando. Sabia que uma bobagem qualquer não deveria servir de motivo para estragar uma festa tão bonita. Com a altivez de uma prima donna de opereta, se entregava, ainda com mais vigor, ao ritual religioso da música. E sustentava a cantoria até que ele poder recuperar a lucidez e o rumo.
Um deles, talvez o homem, carregava a garrafa de cachaça pela metade – que, entre um gole e outro, viajava entre mãos e bocas em incríveis evoluções acrobáticas.
Naquela manhã, durante alguns minutos (similar a um curto circuito emocional, desses que destoam do mundo real, do ordenamento insípido, incolor e anódino da cidade), o espetáculo causou assombro, olhares e comentários reprovadores.
Na contracorrente, eles cantavam. E, através do inusitado, forneciam sabor à vida.
Caminhavam na direção do paraíso.
Em alguma esquina, desapareceram do campo de visão. Deixaram para trás a imagem residual de um casal bêbado de felicidade.
Texto: Raul Arruda Filho
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