Nessas memórias desencontradas cabe destacar um dos espantos que tive em São Paulo (1980 ou 1981): um sebo vendia livros por quilo! Diante daquela mina de ouro, comprei algumas caixas e as despachei pelo correio. Nunca mais encontrei algo parecido
Alguns dos episódios mais significativos da minha vida pessoal estão relacionados com bibliotecas, livrarias, livros. Uma ligação umbilical. Talvez uma maldição. Sei lá. Muitas pessoas não entendem os sentimentos que envolvem as pessoas que compram livros em quantidade. Parece que desperdiçam dinheiro. Essa gente não entende o significado da obsessão pelo conhecimento, a possibilidade de querer poder entender o mundo e, consequentemente, a si mesmo. Seja agora ou mais tarde. Muitas vezes mais tarde.
Esporadicamente alguém sugere os benefícios dos e-books, a praticidade do mundo virtual, as bibliotecas portáteis, uma nova era se desenhando no horizonte. Trato-os com cordialidade, embora, muitas vezes, não consiga evitar o uso do sarcasmo – que, infelizmente, passa despercebido pela vítima. Parte da mitologia que envolve o livro implica em sentir o peso do volume, o cheiro que emana entre as páginas, admirar a capa, a orelha, descobrir os paratextos.
Fui alfabetizado quando tinha seis anos. Em função da orientação católica apostólica romana de minha avó, ganhei duas ou três hagiografias (edições Paulinas) – esses volumes, que se perderam no tempo, constituem a gênese da minha biblioteca atual.
Não havia livros na casa de meus pais. Compreensível. A escolaridade dos dois era precária. Em compensação, lembro-me de vários exemplares dos almanaques Biotônico Fontoura, Sadol e Renascim (que eram distribuídos gratuitamente). Minhas irmãs compravam Sétimo Céu, Capricho, InTerValo. A mãe tinha vários exemplares da revista Burda (e, claro, uma máquina de costura Singer). O verso da folhinha (calendário descartável) também oferecia material variado de entretenimento: tempo de plantio, orações, charadas, curiosidades.
Foi o ingresso na escola pública que abriu espaço para os livros começarem a ter visibilidade na história familiar. Fiz centenas de empréstimos na biblioteca do Centro Educacional Vidal Ramos Júnior. Esgotado o acervo, migrei para a Biblioteca Pública, que ficava na Rua Nereu Ramos (em um sobrado que não existe mais). Lá conheci Arthur Conan Doyle, Karl May e Emílio Salgari, talvez os escritores mais importantes da minha adolescência. Mais tarde a Biblioteca Pública mudou de endereço – eu fui junto.
Nos anos 80, a situação econômica familiar se modificou e aquelas edições da Tecnoprint e da Abril Cultural, que formaram os primeiros itens do meu acervo pessoal, começaram a ganhar a companhia de livros com edições mais sofisticadas. A pessoa mais importante desse período foi dona Maria Josefina Rath de Oliveira, proprietária de “A Sua Livraria”, que (de forma insana) me garantiu crédito ilimitado – essa relação perdurou até o dia que a livraria fechou as portas, em 2009. Qualquer agradecimento por tamanha generosidade nunca será suficiente.
Nessas memórias desencontradas cabe destacar um dos espantos que tive em São Paulo (1980 ou 1981): um sebo vendia livros por quilo! Diante daquela mina de ouro, comprei algumas caixas e as despachei pelo correio. Nunca mais encontrei algo parecido.
Outro episódio característico de quem vive correndo atrás dos livros ocorreu no final dos anos 90, quando morei por rápido período em Ingleses, norte de Florianópolis. Não encontrei, na Biblioteca Central da UFSC, um texto importante que precisava citar na Dissertação de Mestrado. Procurei por toda a cidade. Ninguém tinha, diziam que estava fora de catálogo. Como naquele tempo não existiam portais de procura como o Estante Virtual, quase desisti da busca.
Em determinado momento, alguma alma bondosa disse que deveria procurar na Lunardelli. Argumentei que isso era impossível, a livraria não existia mais. Esqueça isso, bata na porta, sempre tem alguém trabalhando, foi o que ouvi. Em um final de tarde de janeiro, atravessei a cidade e lá fui. A pessoa que me recebeu não era um exemplo de simpatia e pediu que voltasse uma semana depois – talvez tivessem, iria verificar. Apesar das dificuldades e das distâncias, voltei na data programada. O livro estava lá, mas... envolto em camadas de pó e... a lombada não estava intacta. Perguntei o preço. Uma fortuna – para a época, para um estudante que vivia de bolsa do CAPES. Paguei, sabendo que estava sacrificando alguns almoços. Ainda o tenho.
Há outras histórias, há outras confusões. E isso me faz perceber que, com e-books, elas jamais existiriam, elas não me lembrariam daquele que fui e que agora olha para um tempo que não se esgotou – porque está vivo na memória.
Texto: Raul Arruda Filho
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