Alguma coisa me chamou a atenção do outro lado da rua. Foi só um instante. Quando voltei o olhar para o lugar em que ela estava, não mais a encontrei. Provavelmente entrou na galeria, disse para mim mesmo
Era quase noite e chovia. Torrencialmente. A rua deserta e a pouca visibilidade contribuíam para ampliar a sensação de desconforto. Os óculos – inúteis naquele momento – estavam pendurados na camisa. O vento insistia em empurrar o guarda-chuva para fora das mãos.
Estava indo para a rodoviária. A razão de estar ali, naquele lugar, naquele momento, não é importante, é apenas um marcador para situar a história no tempo e no espaço. O que quero contar é de outra natureza.
– Nunca esqueça isso, Jesus te ama.
O susto foi grande. Não pelas duas frases, um clichê em tempos sombrios, mas pela mulher – que surgiu não sei de onde. Não creio que fosse assombração, fantasmas ou alguma criatura de outra dimensão. Sei que isso não existe. Quer dizer,... De qualquer modo, a vida está repleta de enigmas.
Tentei falar alguma coisa, talvez um mísero obrigado, mas, naquele instante, a angústia e a afonia se fizeram presentes. Demorei alguns segundos para recuperar o controle da situação – era tarde demais, ela tinha sumido no meio da tempestade.
Percebi que estava me molhando. Por algum motivo, tinha fechado o guarda-chuva e, de certa forma, abraçado a chuva.
O que se seguiu foi o trivial. Fiz o que tinha que fazer e voltei para casa. Tomei um banho, bebi uma cerveja e esqueci o episódio – que ficou depositado em alguma gaveta da memória até alguns meses atrás, um pouco antes do início da pandemia.
Fui ao centro da cidade, provavelmente para pagar algum boleto, não lembro exatamente o quê. E isso também não tem a mínima relevância. O que importa é que a vi. Ou melhor, tive a impressão que era a mesma mulher.
Naquele instante – na minha fantasia – a mulher e a chuva estavam juntas, outra vez. Fiquei olhando de longe. A situação se parecia com aquele jogo em que é preciso procurar por sete diferenças em dois desenhos quase iguais. Conferi várias vezes os detalhes, procurando semelhanças, afastando as distinções. Não consegui concluir se era ou não a pessoa que encontrei no temporal.
Alguma coisa me chamou a atenção do outro lado da rua. Foi só um instante. Quando voltei o olhar para o lugar em que ela estava, não mais a encontrei. Provavelmente entrou na galeria, disse para mim mesmo. Sem raciocinar, fui atrás. Esforço em vão. Tinha desaparecido.
Foi o melhor desfecho possível. Não tenho a mínima ideia do que lhe diria se a localizasse. Lembrar a chuva seria patético. Possivelmente, ela me olharia incrédula, sem entender porque um desconhecido estava lhe atribuindo aquele tipo de comportamento. Ou, em hipótese mais assustadora, olho no olho, confirmasse a proposta religiosa e dissesse que essa minha busca por explicações evidenciava a força dos desígnios do Senhor.
Estou convicto de que, algumas vezes, deve-se manter fechado o baú do tesouro. O mistério pode ser mais valioso do que a verdade.
Texto: Raul Arruda Filho
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