Houve um tempo em que o mundo infantojuvenil de minhas ilusões se transformava. Paradoxalmente, o espaço físico da casa onde morávamos ficava maior. Antes da chuva, só havia o quarto e a cozinha
A infância está perdida. Os dias de chuva, também. Simultaneamente, as lembranças são uma constante. O ontem e o hoje se confundem em um redemoinho entre o que o que poderia ter sido — e foi! — e a paixão de quem um dia imaginou que isso nunca pudesse acabar.
Houve um tempo em que o mundo infantojuvenil de minhas ilusões se transformava. Paradoxalmente, o espaço físico da casa onde morávamos ficava maior. Antes da chuva, só havia o quarto e a cozinha (não tínhamos televisão) — as outras dependências eram intocáveis! A sala, sempre preservada, mal começava a garoar, era invadida por xerifes implacáveis e ladrões de trens em fuga. Às vezes bandos de árabes taciturnos demarcavam terreno entre o sofá e a mesa de jantar. Isso para não mencionar os bandeirantes exterminadores de bugres que viviam ameaçando abrir todas as portas dos armários, na procura ensandecida por suas presas. Tiros de pistola e metralhadora se confundiam com o choro nervoso de minhas irmãs. A mãe sempre reclamava do tempo e dos filhos. “Tome cuidado! Não bata na cristaleira! Meu Deus do céu, menino, esse vaso foi presente de tua avó!” E, com as mãos na cabeça, atravessava o dilúvio doméstico e meteorológico com um interminável rosário de lamentos.
Naqueles finais de tarde, na volta da escola, um chuvisco fino começava a fazer graça. “Chuva de molhar bobo”. Depois, aumentava. A água escorrendo por entre os cabelos, molhando o rosto alegre, uma bênção divina, os pés descalços, os sapatos na mão, a irresistível vontade de navegar pelo mundo afora, dentro das poças d’água — os barquinhos de papel eram confeccionados com folhas de caderno. Depois, caminhar pela sarjeta, chutando a água, sentindo nos pés uma carícia gostosa — vez ou outra o pé encontrava um caco de vidro. Estrago maior era a “reina” da mãe. Antes do banho quente e rápido, enquanto procurava pelo mertiolate (aquele que ardia) e algumas ataduras exclamava: “Você não tem jeito, menino!” Em seguida, o horrível chá de limão com mel, “Toma, é bom prá gripe!” ·.
Frequentemente a chuva caia quando estávamos dentro de casa, protegidos. A solução era tentar colocar o mundo de ponta-cabeça — se a mãe não estivesse por perto. Nas horas de calmaria muitas partidas de banco imobiliário, mico preto, trilha, pega-varetas, dominó. Tudo sempre rápido, sem muita vontade. Comportado demais. Passar o tempo assim não tinha graça. Bom mesmo era brincar de farveste, salvar as carroças que estavam sendo atacadas pelos índios, bangue-bangue, o duelo entre o bandido e o mocinho ao cair da tarde, como naquele filme da matinê de domingo.
Depois, quando o cansaço tomava conta do corpo, irresistível era encostar o rosto na vidraça embaçada e ficar imaginando tristezas. A chuva se confundia com as lágrimas que brotavam na face. A mão abria espaço, desenhando esperanças no vidro. A rua, que antes nem era lembrada, encantava o olhar. Como era bonito ver os vizinhos pelas ruas sem calçamento, caminhando pelo barro, seguindo os seus desatinos. Guarda-chuvas e sombrinhas carnavalizando o sonhar.
Havia também os dias que simulavam bilhete de loteria premiado. Por exemplo: no meio do maior temporal, talvez para tentar acalmar os filhos, minha mãe resolvia fazer bolinho frito (ah, os famosos bolinhos de chuva!) e constatava que faltava algum ingrediente em casa. Faceiro, candidatava-me para ir à mercearia da esquina. Conhecendo o filho que tinha, ela relutava em permitir a aventura. A pressão de meus irmãos e a fome decidiam o problema. Mal colocava os pés fora de casa, sentia a água lamber o corpo. Seria um êxtase, se naquele tempo soubesse o que era isso. Mas, de qualquer forma, era bonito e necessário. Um ritual de passagem. Como não poderia deixar de ser, uma eternidade se consumia até a hora de voltar. Mil e uma brincadeiras, o existir banhado pela inocência. Ao chegar em casa, parecia um “pinto molhado” (como se dizia na época). Atravessava a cozinha, embrulhado em uma toalha felpuda e quente, puro carinho. Mas, o prazer tinha preço e como prêmio, além do resfriado, puxões de orelha (“Onde é que já se viu, menino? Por um acaso você se governa?”)
Depois, alguns anos depois, a vida cada vez mais difícil, a inevitável decadência burguesa, fomos morar num bairro. A casa estava situada em cima de um morro e o ônibus-circular não subia a ladeira em dias de chuva. Na manhã seguinte, o melhor remédio era uma boa caminhada até a civilização. Descalço. Em uma praça, no meio do caminho, só nos restava lavar os pés, calçar o tênis e ir para a aula – com a altivez de um príncipe destronado.
O tempo passou, assim como muitas outras chuvas. Transformei-me em outro. Claro, sempre há o fascínio de caminhar pela chuva. Resisto. Alguma coisa me retém. Nem mesmo quando estou na praia, inevitáveis chuvas de verão, tem sido possível relaxar e aproveitar esse exercício de liberdade.
O mais difícil é esconder que toda vez que chove sinto uma tristeza boba, dessas que, quando a gente menos espera, bate no ombro lembrando um tempo que não existe mais. Tento compreender que tudo tem fim, até mesmo a felicidade. E que a chuva sempre foi como uma dessas namoradas que entram e saem de nossas vidas sem pedir licença.
Texto: Raul Arruda Filho
Foto: Divulgação
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